No Estupor das Horas

Saquear do cotidiano seus objetos, mas também os delicados desejos e os pequenos devaneios implicitamente a eles associados.  É desse modo que Anna Paola Protasio vem construindo sua poética. Deslocados para o universo da arte, tais objetos colhidos do mundo, repetidos (como escadas e cones) ou solitários (como torres e cones de tricô), agigantados ou diminutos, pesados ou frágeis, formam, em geral, estruturas ou sólidos geométricos.

No MUBE estão reunidos, pela primeira vez, cerca de 32 trabalhos realizados ao longo cinco anos de sua recente trajetória artística. Arquiteta de formação, transparece em sua obra a herança construtiva da arte.  No entanto, a artista introduz na abstração da geometria e em seu anseio de universalidade, elementos que vêm perturbar a rigidez matemática e a vontade de ordem da tradição construtiva. Como se, nas estruturas previsíveis e decididas do mundo, o estupor das horas banais com seus sonhos e dores, solidões e temores, viesse reclamar seu lugar e ocasião

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Se, por um lado, as referências ao repertório da arte construtiva são evidentes, por outro, os fragmentos do mundo inseridos na abstração das estruturas tornam-se provocações visuais e sensíveis. Buscam responder a uma interrogação cada vez mais urgente para a artista: como fazer com que a arte responda à experiência humana em sua complexidade? Como fazer com que esse mundo se abra às sutilezas e às pequenas sensibilidades? 

Para a artista, não bastava apenas deslocar objetos mundanos para o contexto da arte, esvaziando-o de seu sentido e função habituais. Tampouco importava conservar os significados socialmente determinados de tais objetos. Tratava-se também de tomá-los em toda sua intenção simbólica, a um só tempo amplificando-a e modificando-a, gerando um confronto entre o ascetismo das abstrações e a impregnação significativa dos objetos. Se a arte deve ser invadida pelos langores e sobressaltos do cotidiano, o dia a dia deve ser esvaziado de sua familiaridade (de sua cotidianidade, portanto) pela arte, para extasiar-se e assustar-se com sua excentricidade. Por isso ela usurpa os objetos do mundo: para devolvê-los em reverberações poéticas e em pequenos estranhamentos.

 É então que o título surge em jogos semânticos, tecendo com a obra relações curiosas. Ou a artista toma a palavra em sua literalidade descritiva, tanto explorando tautologias como a pluralidade e deslocamento dos sentidos; ou ela concede a esses objetos e obras, ao nomeá-los, um sopro vital, uma anima, como se os objetos corporificassem estados afetivos.  

Na primeira estratégia, vemos um conjunto de trabalhos feitos com cones de trânsito recebe a denominação de “Sentidos”. Afinal, é para isso que se destinam, orientam o sentido do trânsito. Mas sentidos ali também supõem a direção e arranjo interno das peças ao estruturar as geometrias que a artista constrói: os cones se voltam para dentro, para fora, formam uma mórula ou uma estrela, tensionados em contenções e expansões. Sentido é ainda o significado transformado no deslocamento do objeto de seu contexto originário (do trânsito para arte). Sentido é, por fim, o que nos permite perceber e sentir nesse deslocamento.

“Desvio concreto”, por exemplo, é composto por dois planos separados e torcidos – desviados de sua ortogonalidade, portanto – por um livro entre eles, “Poesia neoconcreta” de Ferreira Gullar (afinal, o neoconcretismo pretendeu um desvio do concretismo, a emancipação do plano pictórico para a experiência imanente do espaço).  

Na segunda estratégia, os jogos tautológicos são substituídos pela indexação ao significado simbólico de determinados objetos. Assim, se torres são signos de proteção e isolamento; escadas traduzem anseios de ascensão e transcendências; cones de tricô e fios de lã, tensionados por um agigantado peso de madeira que se contrasta à delicadeza do gesto de fiar, conduzem ao imaginário feminino e às fábulas infantis; e mundos são esferas de vidro entre o alcance das mãos e a iminência da queda e da destruição, entre delírios de onipotência e a impotência sentida nos prenúncios de uma catástrofe universal.

Em “Solidão” uma pequena torre de xadrez flutua transparente e ensimesmada no interior de cubos vazados de ferro e luz (em que vemos as referências aos cubos de Franz Weissmann  e à vibração luminosa de Jésus Soto). Cubos que se autossustentam, interdependentes, pensos por cabos quase invisíveis. Se são estruturas euclidianas do espaço e tempo na tradição clássica, ali insinuam uma perspectiva introvertida, guardando a torre de cristal que paira como sem amarras ou contatos com o mundo exterior que a envolve. Uma deriva cercada, uma proteção asfixiante. Tal incomunicabilidade, tal solilóquio e recolhimento reaparecem em outras obras, como em “Sede eterna”, “Buscando a resposta”, “Liberdade vigiada”, “Insustentável leveza”. São gaiolas diáfanas, aquários envoltos em pesadas âncoras, redomas de vidro apartando mundos que se enamoram, mas não se tocam. Cárceres de cristal encerrando prisioneiros de uma ilusória liberdade.

No sentido oposto da absorção melancólica, outros trabalhos apontam para a busca em transpor ou extenuar os limites, roçar o irrepresentável e o invisível, aquilo que nos excede e sobre o qual não temos controle. Acenam metafísicas improváveis extraídas do mais trivial dos objetos, como se fosse preciso pactuar secretamente com as coisas do mundo para descobrir o extraordinário perdido na rotina extenuante dos dias.

É assim que um bloco de concreto (material associado ao universo masculino e rude da construção civil) levita, imobilizado, como se ignorasse a gravidade e a brutalidade de sua matéria. “Pacto com o infinito”, lê-se na legenda do trabalho.

Se “Pacto” insinua a desmedida do espaço, “Instante fraturado”, “Quase”, assinalam a fugacidade do tempo e a pretensão de conjurar efemeridades e consumações, de paralisar os pequenos e os grandes movimentos — como a tinta que precipita da pá interrompendo o escoamento em um ainda não. Na vídeoinstalação “Instante fraturado”, bicicletas vermelhas atravessam paredes e paisagens, estendendo e invadindo o extra-campo da imagem projetada, como se fatiassem o contínuo temporal. Nesse corte, é como se o instante se debatesse entre a distensão e a fratura, entre o movimento e o repouso. Situando-se no limite visível do espectro luminoso, os vermelhos possuem os maiores comprimentos de ondas de luz perceptíveis ao olho humano. Seria possível percorrer o mundo (em bicicletas vermelhas) no limite justo entre o visível e o invisível?

A mesma alusão à transcendência surge em outros trabalhos. A artista apropria-se de escadas de obra como metáfora poética das elevações: escadas que, sobrepostas em tênue equilíbrio, constroem pontes interrompidas em direção à abóbada celeste. Escadas que, atraídas para um núcleo, sugerem construir um mundo ou dilatá-lo em explosões e vetores, apoiando-se no solo de modo instável em três “Leves pontos de contato”.  Escadas transparentes e frágeis de onde pende uma TAG contendo a seguinte instrução de uso: “peso máximo permitido: uma alma por vez”. Escadas que terminam por trair sua função originária: conduzir ao alto. Afinal, são escadas impossíveis, são ascensões impossíveis. Toda ascensão é apenas um desejo, perseguido em reconstruções intermináveis, em escadas e pontes inacabadas. Arte não é o instante da transcendência, alimenta-se das perplexidades e vertigens das quedas, dos mistérios insolúveis do universo, das errâncias que fizeram o homem buscar, em vão, seu rosto refletido nas estrelas. 

Sutilmente atravessado de doces miragens, o repertório poético visual da artista, revela-nos apenas que, entre o cálculo das frias geometrias e o inesperado dos afetos, a sólida sustentação que prometem as estruturas será sempre estremecida pela insustentável leveza dos dias e dos seres.

Marisa Flórido Cesar, 2012
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.