Segredos e Sussurros

Passam as folhas e com elas a vida e seus escritos

O que as palavras fazem com o corpo? Essa é uma das perguntas que podem emergir ao nos depararmos com a produção de Anna Paola Protasio. Todos os seus trabalhos, de uma maneira ou de outra, exploram a complexa relação entre os materiais empregados e os sentidos narrativos e simbólicos da obra, e o vínculo indissociável entre o fazer e o assunto da feitura. De um lado, Protasio emprega vez e sempre materiais frios, duros – metais como latão, ferro e aço; pedras como mármore e granito; plástico, acrílico, vidro. De outro, também reitera o uso de elementos mais moles e suaves como madeira, borracha, feltro, tecido, carpete, linha e papel. É na articulação poética desses ingredientes que ela dá corpo às suas composições, cuja integridade se completa com os títulos intrínsecos que cria. A linguagem tem, portanto, um papel fundamental dentro de sua trajetória e a escrita, assim, anda de mãos dadas com o ajuntamento dos materiais diversos que explora.

Em “Segredos e Sussurros”, a artista apresenta uma série de trabalhos recentes e inéditos, pontuados lado a lado com algumas obras que tiveram um papel significativo em sua carreira. A mostra é organizada em três momentos, como uma ópera – uma introdução leve, que revela o mote dessa história; um segundo ato denso, que desenvolve a potência da narrativa e estabelece tramas e tensões; e um ato final que nos oferece um respiro doce, poético, o desfecho suave de resolução de um percurso intenso. No prelúdio da exposição, dois pequenos trabalhos dão o tom – em “Queda de Braço”, Protasio cria esculturas que traduzem as palavras do título em corpos de peso. Blocos de madeira se prendem a blocos de pedra por meio de dobradiças de metal. Flutuando no espaço expositivo, as peças desafiam sua própria materialidade com uma leveza inverossímil.

Ao entrar na primeira sala, encontramos uma série inédita que parte de um material ordinário e impessoal – os carpetes industrializados usados em feiras e convenções ou escritórios-padrão. Ao serem cortados, pintados e manipulados, tornaram-se um estrato afetivo de composição e costura.

Presas com grampos, as tiras de carpete foram sendo acumuladas em camadas de forma manual –  essa é a primeira vez que a artista se impõe o desafio de executar um projeto sozinha, do início ao fim, sem a expertise de artesãos ou técnicos que a ajudam em certas peças. Assumindo para si o papel do tapeceiro, realizou a ordenação das tiras, organizou o alinhamento gráfico dos grampos, elaborou as imagens figurativas e construiu os trabalhosos volumes, tornando esses trabalhos mais íntimos. Cada uma das obras tem sua própria descrição, funcionando como pequenos contos: a cabeça no pé, que se ancora no chão com uma anilha de 5kg; a lótus de Cleópatra, que evoca uma força feminina; o choro confundido com a chuva (ou seria o contrário?); o soco no estômago que deforma o trabalho para dentro, sem respiro. Nesta sala os trabalhos falam alto, o silêncio não existe. Mesmo se tentarmos nos isolar, ainda será possível ouvir os batimentos cardíacos, o sangue correndo nas veias.

Na segunda sala, inversamente, nos aproximamos mais de uma quietude – ainda que continuemos a escutar o corpo. Duas escadas sugerem a ascensão, a subida e, sob um olhar mais cuidadoso, nos revelam por meio da linguagem palavras de igual força e delicadeza. Entre esses dois trabalhos está a série inédita de obras feitas com cartas escritas a convite da artista e nunca lidas, congeladas e fixadas nas costuras de Protasio. Em “Segredos Interligados”, 15 pessoas do círculo familiar e afetivo da artista escreveram cartas contando seus segredos e intimidades, lembranças difíceis ou histórias das quais desejavam se libertar. Em “Dois Irmãos”, o desenho do morro de mesmo nome amarra as epístolas do pai de Protasio ao seu tio, e do tio ao pai. Diante dos trabalhos, as vozes dessas cartas que nunca serão lidas quase podem ser ouvidas. As missivas só se conhecem e se sabem entre si, estão conectadas pela urdidura de uma trama enredada pela própria artista, que manuseia esse material carregado de energia, liberando pelas perfurações do bordado os segredos e o peso do passado.

Julia Lima, curadora, pesquisadora e tradutora, São Paulo 2020