Alma

Um Crescente Limiar

1- O surrealismo, no âmbito artístico, foi responsável por tornar o sonho mais presente na vida cotidiana. O fato de ter utilizado também o cinema tornou o gesto notório. Tratava-se de impor núpcias antinaturais entre coisas, animais, feiras, praças, pessoas, casas etc. Este é um débito do qual não podemos nos esquivar.

2- O artista contemporâneo, em viragem importante, ao invés de simplesmente fazer o sonho contrastar, meteu-se na atividade de mostrar que a diferença estrita entre o onírico e a realidade, deve-se, tão somente, à convenção.

3- A questão não é de beleza ou feiura, de nenhuma forma o sonho é tomado em acepção de recompensa noturna à uma consciência tranqüila, mas sim de notar que o descobrimento da imaginação irreprimida, dá-nos conhecimento sobre a elasticidade da nossa realidade, para o bem e para o mal.

4- Há quem veicule que a insensibilidade ao onírico nos dias, à natureza imagética e pictórica das nossas paisagens diárias, seria-nos útil, porque assim estaríamos protegidos de nós mesmos. Nada mais falso ou imoral. Porque nem sequer somos homogêneos no que ignoramos e nem estamos condenados a sempre usar o lado cortante da faca. A imaginação é fardo e asa.

5- Protasio se sente atraída por tais questões que reputamos de primeira grandeza. A aparente dispersão de sua obra é sentida apenas por quem não reconhece a capacidade da arte contemporânea enfrentar as dúvidas mais importantes. Se muitos artistas se sentem confortáveis com a repetição de um único tema, ou com pequenas mudanças, de modo a fugirem da tensão causada pelo desconhecido, tal não ocorre na pesquisa dela. Não só ela insiste nas mais radicais buscas de material, e de portentosos formatos, como nunca se põe a frequentar perguntas para as quais já se sabe as respostas.

6- Neste quadro estão os trabalhos com os quais busca atribuir visualidade para as especulações da ciência sobre o comportamento da matéria. Merece destaque sua linda instalação com vídeo em que uma fila de ciclistas vestidos de vermelho se transportam de cenário bucólico para objetos escultóricos e transitam entre paredes e salas. Isso como se assistíssemos a simultaneidade da materialidade, mais ou menos como se a mesma pessoa que nos passou à frente dos olhos, repetisse-o de novo e de novo, desafiando a progressão temporal, em um insistente déjà vu.

7- No que poderia ser denominada uma preocupação com ontologia social, na instalação Revoada, Protasio multiplica pássaros dourados, por todo o espaço expositivo, pintados sobre intimidadoras lixas industriais, em bandos realizando movimentos distintos. Eles apenas são interrompidos por fios amarelos / distribuídos como facho de luz / a demarcarem fronteiras para o vôo. Este ciclo, assistido por pesadas runas de cerâmica, presas ao teto, e por uma vestimenta, quase armadura, das mesmas lixas, cortadas um pouco menores, confeccionada nas medidas do corpo da artista.

8- Walter Benjamin escreveu em suas teses que a história é uma locomotiva rumando para o abismo. Essa sorte de enunciado, lido como messiânico, tem convencido a muitos, o que se reverte na aceitação das mais desesperadas cosmologias, que acabam por nos distrair dos efeitos ruins presentes na retórica do fim do mundo. Digamos, então, que essa seja uma leitura desatenta, que, na verdade, ele falava de um trem transpirando fumaça, como um cavalo de corrida, mas que seria mantido no mesmo lugar, pelas decifrações permitidas pela coragem diante da imagem, numa versão pictórica da vitória da tartaruga sobre Aquiles. Donde não estaríamos diante do fim, mas sim do Limite, como sabia Mario Peixoto. Se fosse isso, e tivéssemos coragem de parar e olhar o vazio de frente, entre nós e o desconhecido haveria um limiar. Estaríamos sobre um sólido dourado, de corpo mais bojudo do que o prolongamento que nos levaria até o abismo. Nós seríamos o olho, a esfera de cristal, decidida, paciente, a perceber.

Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.
Atua curador da Galeria de Arte do Instituto Brasil-Estados-Unidos. É autor, dentre outros, dos livros Fuga sobre o Branco [ ]. e Variações: sobre um tema de Anselm Kiefer.